sábado, 27 de setembro de 2014

2º CAPÍTULO: SUJEITO EPISTÊMICO

O sujeito epistêmico de Piaget

Para explicar como todos podem aprender e o desenvolvimento da inteligência, Jean Piaget reuniu saberes da Biologia, da Psicologia e da Filosofia no conceito do sujeito epistêmico

Elisângela Fernandes (novaescola@fvc.org.br)
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PENSADOR PLURAL Piaget (em foto no seu escritório, no ano de 1976) incluiu saberes de várias áreas em sua obra. Foto: Arquivo Instituto Jean-Jacques Rousseau/Fundo Laura Lacombe. Pesquisa iconográfica Josiane Laurentino
PENSADOR PLURAL  Piaget (em fotono seu escritório, no ano de 1976) incluiusaberes de várias áreas em sua obra

Mesmo sem ser pedagogo, o cientista suíço Jean Piaget (1896-1980) foi um dos pensadores mais influentes da Educação. Sua atualidade e repercussão na sala de aula devem-se, principalmente, ao incessante trabalho em compreender como se desenvolve a inteligência humana. Entre estudos e pesquisas, que renderam mais de 20 mil páginas, um conceito perpassa toda a sua obra: a ideia do sujeito epistêmico. Segundo Piaget, esse "sujeito" expressa aspectos presentes em todas as pessoas. Suas características conferem a todos nós a possibilidade de construir conhecimento, desde o aprendizado das primeiras letras na alfabetização até a estruturação das mais sofisticadas teorias científicas. 

Que características tão especiais são essas? "Basicamente, a capacidade mental de construir relações", explica Zélia Ramozzi-Chiarottino, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Essa habilidade permite o desenvolvimento de uma gama de operações essenciais para a aquisição do saber: observar, classificar, organizar, explicar, provar, abstrair, reconstruir, fazer conexões, antecipar e concluir - ações que, de fato, todos temos o potencial de realizar. Um esquimó, por exemplo, é capaz de diferenciar a paisagem fria e se localizar no gelo assim como um índio brasileiro sabe caminhar pela Floresta Amazônica sem se perder. Em ambos os casos, o modo de classificar (no caso, mapear) e reconhecer o espaço geográfico é o mesmo. O que muda é a coisa classificada, que varia de acordo com o meio. 

O conceito de sujeito epistêmico (leia um resumo no quadro abaixo) começou a tomar forma quando Piaget iniciou seus estudos sobre o processo de construção de conhecimentos de Matemática e Física na criança pequena. "Ele é considerado o inaugurador da epistemologia genética, teoria que investiga a gênese do conhecimento, tema que estava ausente das pesquisas até o fim do século 19", diz Lino de Macedo, também do Instituto de Psicologia da USP. Até então, as formulações sobre o desenvolvimento da inteligência eram uma exclusividade dos filósofos. As ideias de um deles, o alemão Immanuel Kant (1724-1804), tiveram grande impacto na obra de Piaget. Kant foi um dos primeiros a sugerir que o conhecimento vem da interação do sujeito com o meio - uma alternativa ao inatismo, que considerava o saber como algo congênito, e ao empirismo, que encarava o saber como um elemento externo que só podia ser adquirido pela experiência (leia mais no quadro). 

Ao retrabalhar as proposições de Kant, Piaget concordou com a ideia da interação sujeito/meio - mas foi além, afirmando que o desenvolvimento das estruturas mentais se inicia no nascimento, quando o indivíduo começa o processo de troca com o universo ao seu redor. Ele também destacou a necessidade de uma postura ativa para aprender. Imagine, por exemplo, uma pessoa que more a vida inteira numa montanha. Ela pode nunca saber que existem terras baixas, planícies e vales de rio. Por outro lado, se decidir fazer uma viagem morro abaixo, vai conhecer a paisagem de seu entorno e, por meio das relações (comparação e classificação, por exemplo), vai entender que a montanha é um elemento natural diferente dos demais. "Para que o processo de estruturação cognitiva ocorra, é fundamental a ação do sujeito sobre o meio em que vive. Sem isso, não há conhecimento", completa Zélia (leia mais no quadro da página seguinte).


APOIO PSICOLÓGICO Em foto do ano de 1925, Piaget (primeiro à dir.) aparece junto ao mestre Claparède (terceiro à dir.). Foto: Instituto Jean-Jacques Rousseau/Fundo Laura Lacombe. Pesquisa iconográfica: Josiane Laurentino
APOIO PSICOLÓGICO  Em foto do anode 1925, Piaget (primeiro à dir.) aparecejunto ao mestre Claparède (terceiro à dir.)
A cada nova informação, uma constante reelaboração
A Filosofia não foi a única disciplina com a qual Piaget dialogou. Da Biologia, o pesquisador considerou as ideias evolutivas do naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829). Da Psicologia, continuou os estudos pioneiros de seu mestre, o suíço Édouard Claparède (1873-1940), sobre o pensamento infantil. Armado com o conhecimento dessas três áreas (e de décadas de observação e entrevistas com crianças), o pensador suíço terminou por se contrapor a vários pontos da filosofia de Kant, argumentando que as estruturas cognitivas não nascem com o indivíduo. À exceção da habilidade de construir relações (para Piaget, essa é a única característica pré-formada no ser humano), as demais são construídas e reelaboradas ao longo do tempo. Cada nova informação atualiza não só o que se aprende mas também as formas por meio das quais se aprende. 

Um exemplo ajuda a ilustrar essa ideia. Para a Ciência, a noção do espaço (e) como resultado do produto da velocidade (v) pelo tempo (t) é uma verdade universal, expressa pela fórmula e = v X t. Mesmo quem ignora essa equação sabe que percorrerá uma distância maior num mesmo intervalo de tempo caso decida correr, em vez de andar, certo? Isso é uma forma de conhecimento, ainda que não formalizada. Já indivíduos que conhecem a fórmula podem prever a velocidade necessária para cobrir determinada distância no tempo estipulado, ou imaginar se uma equação semelhante pode explicar outros processos e fenômenos da natureza. 

O conhecimento avança, mas num processo não cumulativo 

Para o indivíduo que aprende, esse avanço de um nível de menor conhecimento para outro maior inclui o questionamento constante do que já se sabe, revendo certezas e admitindo a validade de determinadas afirmações apenas em alguns casos. Estudantes das séries iniciais, por exemplo, geralmente supõem que, ao multiplicar um número por outro, o resultado será invariavelmente maior. Entretanto, quando se deparam com os números racionais (frações e decimais menores que 1), percebem que nem sempre a regra é verdadeira. "O conhecimento não é cumulativo. Ao mesmo tempo que alguns saberes são adquiridos, outros podem ser modificados ou superados", afirma Adrian Oscar Dongo Montoya, professor da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquista Filho" (Unesp), campus de Marília. 

No terreno da Educação, a concepção de sujeito epistêmico continua válida. Contribuiu, aliás, para transformar definitivamente as ideias sobre o papel do aluno em sala de aula. Se o conhecimento nasce da interação com o meio, não é mais possível pensar numa criança que só escuta, passivamente, a exposição dos conteúdos. Estudos recentes vêm confirmando os efeitos do meio ambiente sobre o funcionamento do cérebro, assim como o valor de um comportamento ativo como motor da evolução. "Todo estudante precisa enfrentar problemas para avançar. Não adianta o professor dizer como se resolve. Faz parte do aprendizado tentar soluções e experimentar hipóteses para superar desafios", explica Lino de Macedo. 

Justamente nesse ponto, aparece outra ressalva à teoria piagetiana. Segundo alguns críticos, ele teria dado pouca atenção às interações sociais (como as que ocorrem com colegas e professores), como se para adquirir conhecimento bastasse o indivíduo interagir individualmente com o meio. "Não é isso o que Piaget defende. É um equívoco dizer que ele fechou os olhos para as trocas sociais", acredita Macedo. "A cobrança de um colega por argumentos ou o pedido para que explique melhor o que pensa sobre determinado tema faz com que o indivíduo se desenvolva. O sujeito epistêmico é um sujeito social, que compartilha e debate hipóteses", conclui.


Na Educação, a importância de testar hipóteses e soluções 

Outra concepção diretamente derivada da obra de Jean Piaget é a noção de que, se todos têm as mesmas possibilidades de construir conhecimento, então todos podem aprender. A essa altura, uma questão parece inevitável: o que explica as diferenças de conhecimento - por vezes tão acentuadas - entre os indivíduos? Por que algumas pessoas chegam à idade adulta com um amplo domínio dos conteúdos científicos e outras não? 

Para o grande pensador suíço, salvo nos casos de indivíduos com algum dano cerebral, a capacidade de aprender está diretamente relacionada às oportunidades de troca. A explicação para os distintos níveis de aprendizagem passa por aí: hoje sabe-se, por exemplo, que crianças que possuem contato com livros em casa chegam à escola com mais facilidade para se alfabetizar do que as que vivem em famílias que não têm o hábito da leitura. "Tais defasagens, porém, são transitórias. Se tiverem mais oportunidades, essas crianças podem perfeitamente superar as diferenças", completa Zélia.

Trecho de livro

"As coordenações de todos os sistemas de ação traduzem, assim, o que há de comum em todos os sujeitos e se referem, portanto, a um sujeito universal, ou seja, sujeito epistêmico e não ao sujeito individual." 
Jean Piaget e Beth Evert, no livro Épistémologie Mathématique et Psychologie. 

Comentário 
Para chegar ao conceito do sujeito epistêmico, Piaget investigou características comuns a todas as pessoas no processo do desenvolvimento da inteligência. De acordo com ele, "o que há de comum em todos os sujeitos" é a maneira como elas estruturam e organizam as coisas que conhecem: a capacidade de relacionar, classificar, abstrair, separar e agrupar, entre outras, que o autor chama de "coordenações de sistemas de ação". O sujeito individual, por outro lado, é único: vive em época e cultura específicas, que influenciam suas crenças e opiniões.



Questão de concurso 

Prefeitura Municipal Campina Grande, PB, 2002 
Processo seletivo para professor de Educação Básica I 

No âmbito educacional, a mudança do foco das discussões dos métodos de ensino para o processo de aprendizagem da criança, entendendo-a como sujeito cognoscente, foi promovida pelo pensamento: 
a) Inatista 
b) Marxista 
c) Crítico social 
d) Construtivista 
e) Estruturalista 

Comentário 
A alternativa correta é a D. A chave para responder à questão é entender que sujeito epistêmico, sujeito cognoscente ou sujeito do conhecimento são sinônimos - e estão associados ao pensamento construtivista de Jean Piaget. Ao tratar a produção do conhecimento como resultado da interação entre o indivíduo e o meio, Piaget concebe a criança como um sujeito ativo, criticando a escola tradicional baseada nas perspectivas inatistas ou empiristas, em que os métodos de ensino são o ponto central. Em relação às outras três concepções, a marxista defende um sistema de ensino capaz de transformar a sociedade, enquanto a estruturalista e a crítico-social aproximam-se por mostrar como a Educação atua para reproduzir (e, muitas vezes, aumentar) as desigualdades da sociedade.

Resumo do conceito
Sujeito epistêmico
Elaborador : Jean Piaget (1896-1980) 

Também chamado de sujeito cognoscente ou do conhecimento, o conceito diz respeito às estruturas mentais comuns a todos os seres humanos, que conferem a possibilidade de aprender fazendo relações entre diferentes informações (classificação, comparação, dedução etc.). Tais estruturas se desenvolvem do início ao fim da vida por meio da ação dos indivíduos sobre o meio, num processo de interação com o objeto de conhecimento e com as outras pessoas, o que possibilita a construção de níveis de saber cada vez mais complexos.

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